Escrevo isto para me libertar desta dor.

Para ajudar e dar voz às mulheres que passaram pelo mesmo ou pior. Sei que são muitas.

Para que possa mudar a maneira como as mulheres são tratadas quando são mães nos hospitais públicos deste país.

Tinham-me marcado uma cesariana para o dia 3 de Março porque o meu bebé estava sentado. Sentia-me muito desiludida por não poder ter um parto natural e por não deixar que o meu filho nascesse quando ele quisesse. Estava ansiosa pelo que viria. Mas confesso que nunca pensei na dor. Felizmente o meu filho acabou por decidir nascer antes da data marcada.

As águas rebentaram no dia 1 à noite, enquanto estava a passear os cães. Não rebentaram ao estilo novela, como um garrafão de água a explodir. Foi uma pequena perda.

Fui para o hospital de seguida, entrei logo para as urgências e uma enfermeira enfiou-me (a palavra é mesmo “enfiar”) a mão pela vagina, o que fez com que as águas, dessa vez sim, explodissem género telenovela. Tratavam de mim como se eu fosse um embrulho.

Começou aí o pânico. O meu filho estava dentro de mim sem líquido amniótico e eu estava à espera. Não havia quase movimento naquele hospital, no entanto era tudo muito lento. O meu corpo começou naturalmente a tremer de medo como se estivesse nua no meio do Ártico. Foi uma verdadeira quimera de autocontrolo para me darem a epidural sem que me mexesse.

Testaram a epidural em ambas as pernas, com um spray. Sente quente ou frio? E agora? Ainda sente contrações? Sim, sentia, sentia o spray frio, sentia tudo. Reforçaram a dose, mas praticamente sem efeito.

Mesmo assim, porque a enfermeira me tinha rebentado o líquido onde o meu filho sobrevivia dentro de mim, e porque eu tinha jantado e não podia levar anestesia geral, fui para o bloco operatório. E eu não podia, aparentemente, ter um parto natural, dado a posição do bebé. Tinham passado 3 horas.

No bloco, amarraram-me os braços à maca. Cortaram-me a barriga e tiraram o meu filho, sem que a epidural estivesse a funcionar como era suposto. Eu gritei, gritei tanto que nem ouvi o meu filho chorar quando nasceu. Só vi que o levaram embora durante uns segundos, para longe de mim. Não o puseram logo no meu colo. Só depois me desamarram e deixaram que lhe pegasse. Ele começou logo a mamar e aí a dor desapareceu completamente. Era uma inundação de amor. Durou pouco.

Levaram-no novamente para longe de mim enquanto me agrafavam o corte que me rasgou a barriga de um lado ao outro e depois levaram-me para uma sala escura, para o recobro, onde fiquei a pedir que me trouxessem o meu filho, num tempo indefinido que me pareceu uma eternidade. Creio que foi mais de uma ou duas horas. Chorei todas as lágrimas que ainda tinha e senti-me absolutamente profanada, desrespeitada, magoada, em tudo que envolvia o nascimento do meu filho.

Estive cerca de uma semana no hospital, numa altura que coincidiu com a greve dos enfermeiros, o que fez com que tivéssemos serviços mínimos diários. Houve pouca assistência, apesar da que havia ter sido cuidadosa (apenas por parte das enfermeiras). De qualquer maneira houve noites em que nem sequer nos vieram desligar a televisão, que seria o mínimo dos mínimos.

Tinha tantas mas tantas dores que não me conseguia mexer ou ser autossuficiente.

No meu quarto havia mais 3 mulheres. Iam mudando ao longo do tempo que eu “acampei” lá e posso dizer-vos que apenas com uma, de parto natural, as coisas correram bem. Não era uma mãe de primeira viagem. Na cama ao lado da minha estava uma recém-mamã como eu, que tinha tentado parto natural e tinha feito tanta força que os seus olhos tinham ficado roxos no interior, de tanto puxar. Depois acabou por ser levada para cesariana com anestesia geral, porque também a epidural não tinha funcionado.

Deram-me alta e eu nem conseguia praticamente andar ou levantar-me. Sentia um borbulhar na barriga, que eu disse ao médico que me deu alta, e ele disse que era da minha imaginação.

Cheguei a casa quando o leite estava a subir. Tinha tanto leite que acho que poderia ter alimentado todos os bebés da região e ainda sobrava. O meu peito parecia uma pedra, tinha dores horríveis e não sabia o que fazer para me aliviar, nunca ninguém me tinha avisado do que poderia acontecer. Passei dias com panos quentes no peito e a tomar duches quentes para me aliviar. Só passava quando o meu filho mamava, mas voltava logo a seguir.

Sentia-me a mulher mais feliz e mais apaixonada do mundo por ter gerado aquela criatura tão perfeita. Mas sentia-me fisicamente péssima. E tudo foi piorando ao longo dos dias.

Quando fui mostrar os meus pontos ao Centro de Saúde, poucos dias depois, já estava com febre e comecei a deixar de sentir as pernas. Passei dois dias a dormir só com intervalos para dar de mamar. 

Retiraram o penso e a minha cicatriz parecia retirada de um filme de zombies. A enfermeira do Centro de Saúde entrou em pânico. Tinha dezenas de agrafos de um lado ao outro da barriga, alguns deles em locais onde não havia sequer cicatriz. Os agrafos rasgavam-me a barriga de tão inchada que estava. Fui reenviada para as urgências do hospital. Novamente.

Quando lá cheguei, com um medo e um desânimo brutais, as médicas ou enfermeiras resolveram espremer a minha barriga, como se fosse uma grande borbulha infetada e indolor.   

Perante dores lancinantes e o meu desespero (e bem estoica fui!), fui levada para o bloco operatório novamente, para me limparem uma cicatriz que estava tão infetada que já não tinha outra solução. Tudo mal cozido, mal cortado, mal feito. Não podia tomar nada para as dores porque estava a amamentar, e preferi suportar e manter a amamentação.

Apesar de tudo isto, a minha cicatriz ainda se mantém disforme, inchada, enorme, de um lado ao outro da barriga (superior a 10 cm). Tenho de viver com ela todos os dias.

Fiquei horas na fila no bloco operatório, mais uma vez sem o meu filho. Eu sabia que ele tinha fome e eu comecei a entrar em desespero. Chamei as enfermeiras para o trazerem até mim, mas nada. Muito tempo depois apareceu uma, com uma bomba para tirar leite. Para quem tem muito, muito leite como eu tinha era uma tortura tirar o leite com uma bomba. Era a solução mais horrível e desconfortável possível.

Voltei a ser operada, desta vez com anestesia geral. Saí do bloco em pânico, para ir alimentar o meu filho que estava faminto – não tinha conseguido tirar senão umas gotinhas de leite com a bomba.

Demorei dias a ter alta, apesar de estar bastante melhor, porque calhou poder ter alta numa véspera de fim-de-semana e não havia médicos a trabalhar.

Fui violentada. Agredida. Mal tratada. Amarrada. Desrespeitada durante todo este longo processo. Tal como eu, muitas, demasiadas mulheres também.

Ainda hoje, 5 anos depois, sofro com o que me aconteceu. São danos físicos, psicológicos que tenho de carregar, tentar aceitar, viver com eles todos os dias. Ainda hoje choro ao relembrar como se a minha cicatriz estivesse aberta.

Não podemos ficar em silêncio. Não podemos deixar que sejamos tratadas assim. Não nos podemos calar.

Partilhem nas vossas histórias. Reclamem. Libertem essa dor. Não temos de ser super mulheres, não temos de ser abusadas, não temos de aguentar tudo. E a verdade é que não aguentamos.

Contem a vossa história.

Vamos parar com isto.

Feliz dia da mulher. 

NOTA:

Toda esta história passou-se no Hospital Público de São Teotónio em Viseu. Um lugar onde não vou querer voltar mais na minha vida.